terça-feira, 3 de novembro de 2015

UMA NEM TANTO REVOLUCIONÁRIA MÁQUINA DO TEMPO

                
Imagem de <a href="https://pixabay.com/pt/users/TheDigitalArtist-202249/?utm_source=link-attribution&amp;utm_medium=referral&amp;utm_campaign=image&amp;utm_content=2034990">Pete Linforth</a> por <a href="https://pixabay.com/pt/?utm_source=link-attribution&amp;utm_medium=referral&amp;utm_campaign=image&amp;utm_content=2034990">Pixabay</a>                                                                             Glauco Bastos
Receio que é inerente ao ser humano o íntimo desejo de controlar o tempo. Adiantando-o ou atrasando-o, não importa! O que  realmente importa é a possibilidade de, em certo momento, podermos ter a divina capacidade de retroceder ou avançar a determinado momento, ou melhor ainda, congelá-lo.
Não importa o tempo que desejamos ser:   chronoskairos ou Aeon. O certo é que todos nós, seja por uma única vez, tivemos a vontade casmurra de atar as duas pontas da vida e restaurar, não na velhice a adolescência, mas no presente o passado. Receio, porém, que Bento Santiago tenha razão ao afirmar que para tal exercício a lacuna seja o homem. Sim, verdadeiramente Bentinho tem razão. É preciso sermos deus, então, para completarmos tal lacuna.
Muito se tem escrito sobre essa possibilidade. A ciência tem se debruçado em experimentos que possam nos levar a corrigir os desmandos da humanidade ou a profetizar a redenção humana em viagens ao futuro. Por enquanto, porém, tudo não passa de ficção. E mesmo que tivesse a oportunidade de alterar seja lá o que fosse, deixaria tudo acontecer como realmente se deu.
O leitor deve me considerar um deus cruel, frente a tantas injustiças existentes no mundo. Mas em situação alguma o poder sobre o tempo tem aparecido como salvador da humanidade, quando muito de um só espécime desta raça mundana. Eu sempre trouxe a certeza de que, se um dia me fosse dado tal poder, não mudaria a rota um grau sequer. Não quero mudanças. Estou absolutamente feliz com o que sou.
Mentira! Sim, mentira! E das mais cabeludas. Quanto mais resistimos a algo, caro leitor, é porque mais o desejamos. Tive a clareza disso ontem quando todas as minhas certezas se findaram, durante o almoço, no qual uma colega de trabalho ofereceu-me um mimo e segredou-me:
– Você agora tem o poder sobre o tempo. Faça bom uso!
– Quê!? Você voltou a se drogar? Ou está frequentando de novo aquela seita do chá?
– Nada disso. Recebi isto de herança de meu pai. Guardei-o por vinte anos. Ninguém sabia de sua existência. Somente eu.
– Espera aí! E que história é essa de poder sobre o tempo?
– Meu pai, ao me entregar isto, disse que um dia encontraria alguém de alma atormentada e pervertida. Mas não qualquer alma. Teria que ser a mais atormentada, a mais pervertida. Tão atormentada e tão pervertida, que seria capaz de passar a todos a impressão de uma alma leve e segura.
– Deixa eu ver se eu entendi: você está me chamando de pervertido? Que amiga você é, hein!
– Calma! Não se ofenda! Não estou dizendo que você é devasso. Quis apenas dizer que você é corrupto. Mas antes que se ofenda de novo, vou explicar: somos amigos há anos, não é verdade?
– Sim! É verdade! E daí?
– Já vi você sair de três casamentos. TRÊS. E ainda não se contentou, pois já está noivo novamente, não é?
– Só porque casei três vezes sou corrupto, ou pervertido, ou seja lá o que me chamou?
– Não é bem assim. Mas…É exatamente assim!
– Você bebeu o que mesmo?
– Deixa de ser besta. Você sabe do que estou falando. Você se acovardou. E isso corrompeu toda a sua história de vida.
– Mas do que você está falando? Pirou de vez na batatinha?
– Até mais! Não nos veremos à tarde no trabalho. Vou a uma consulta médica. Cuide bem desse troço! Beijinho!
– Mas espere! … Espere!
Guida saiu como uma flecha. Deixou-me sobre a mesa um objeto octogonal translúcido. O interessante é que, ao observá-lo, deu-me a impressão de já ter visto algo parecido antes. E que história é essa de poder sobre o tempo? Pedi a conta ao garçom, paguei-a, coloquei o pequeno objeto no bolso da jaqueta e segui em direção à redação do jornal. Precisava ainda fechar a pauta de amanhã, antes de me recolher à solidão do meu lar.
Aquela conversa com Guida, porém, não me saía da cabeça. De início, fiquei a imaginar o que estaria se passando com ela. Há dois anos, entrara em uma irmandade de autoajuda para se recuperar das drogas. Sempre fora muito bonita. Chamava a atenção de todos os homens tanto no colegial quanto na faculdade. Éramos amigos de infância e de família. Nossos pais se conheceram quando crianças e sempre se mantiveram amigos. Consideravam-se irmãos, o que tornava a mim e a Guida praticamente primos. Ela conhecia mais a mim do que eu a ela. Instinto feminino, talvez. Guida, desta vez, porém, tinha pegado pesado. Chamar-me de alma atormentada e pervertida já era demais. Com certeza Guida havia recaído. Não poderia estar adicta. E ainda mais com essa história de poder sobre o tempo. Pirou, definitivamente pirou. Tenho que falar com a tia – era assim que eu chamava sua mãe, a D. Júlia – para interná-la imediatamente. Certamente a consulta médica que tinha era com um psiquiatra.
Às cinco da tarde estava impossível tirar o carro do estacionamento. Resolvi deixá-lo na redação do jornal e andar em direção à Praia de Iracema. Uns trinta minutos de caminhada e ainda poderia pegar o pôr-do-sol na Ponte Metálica. Há anos que não faço isso. Quem primeiro me levou lá foi Guida. Éramos adolescentes. Estávamos no primeiro ano do segundo grau. Sempre íamos e voltávamos juntos para o colégio. Éramos vizinhos de rua e de colégio. Sua família, de classe média, tirara-a de um colégio de freiras do bairro e matriculara-a em um tradicional colégio de freiras do centro da cidade; eu, por outro lado, saí de uma escola pública de bairro para uma escola pública do centro, bem em frente ao colégio de Guida.  A minha família resistiu de início por se tratar de um colégio tradicionalmente feminino, mas relutei que a tradição é que fazia dali uma boa escola, que poderia me preparar para o vestibular, etc., etc., etc… Por fim convenci-os. Mas o que eu queria mesmo era estar perto de Guida. Paixão? Não! Tesão? Por algum tempo , sim! E a safada sempre percebeu isso. Por vezes se insinuava, mas quando eu tentava uma abordagem mais direta, ela se esquivava. Divertia-se com isso. Gostava de ser cortejada e, mais ainda, se sentir desejada. Nossa amizade, porém, já nos havia tornado mais que falsos primos. Éramos praticamente irmãos.
Chocou-me a primeira vez que a vi fumando um baseado junto com uns cabeludos na Ponte Metálica. Ameacei contar tudo à tia. Brigamos, talvez, pela primeira vez. Era um misto de preocupação e ciúme. Qual seria seu destino com aquela turma de hippies? Seria a isso que Guida se referira quando disse que me acovardei? Seria um grito de socorro? Será que me culpava por não tê-la resgatado daquela turma de bichos-grilo? Por tê-la deixado se envolver a tal ponto com as drogas que, por último, parecia um morto-vivo a zanzar pelas cracolândias espalhadas pelas praias de Fortaleza? Será que estava me dizendo que sempre fora apaixonada por mim? Que eu poderia ter evitado tantos casamentos se tivesse ficado com ela? Será por isso que nunca se casara? Que nunca ficara por mais de um ano com um mesmo namorado? Lombra! Definitivamente só poderia ser lombra! Guida realmente recaíra.
Cheguei um pouco ofegante à ponte. Havia alguns turistas e muitos jovens. A tarde estava quente, mas o sol se escondia entre nuvens. Aquela bola laranja era impossível de ser vista naquele dia. Só nos restava ver seus raios saindo por sobre e por sob as nuvens, formando uma espécie de rosa dos ventos, belíssima. Ao derradeiro raio de sol, dirigi-me à praça do Dragão do Mar, em busca de um café forte. Liguei várias vezes para Guida, mas estava fora de área. Bateria descarregada ou desligou de propósito para não incomodá-la? Afinal, que diabos queria Guida? Atormentar-me? Divertir-se com esse enigma? Conseguiu! Pois não penso em outra coisa. Guida, Guida, você me paga! Eu, Bentinho? Você? Capitu alencarina? Que droga!
Os bares do Dragão do Mar começavam já a apresentar seus repertórios ao vivo. Boa e pobre gente que vive em busca de reconhecimento e valorização. Tenho por estes músicos de bar uma admiração e uma ternura profundas, mas hoje preciso sair rápido daqui para não manchar seus espetáculos.
Resolvi não pegar mais o carro no estacionamento da redação do jornal. Apanhei um táxi e fui direto para casa. Ao colocar a mão no bolso da jaqueta para pegar a carteira e pagar ao taxista, toquei o objeto que Guida me havia deixado. Só agora dei por  mim de que Guida me chamava mais a atenção do que o souvenir enigmático. Ele, sim, talvez tivesse mais importância naquele momento. Ou não? Afinal, que droga de covardia é esta que , segundo Guida, tornou corrompida e atormentada minha alma?
Subi apressado, coloquei o objeto sobre a escrivaninha e fui tomar banho. Em seguida, sentei-me ao computador para escrever o artigo do dia seguinte. Mas como? As palavras de Guida não me saíam mais da cabeça. Desliguei o PC. Olhei atentamente o objeto translúcido. Toquei-o como a uma lâmpada de Aladim e vi uma nuvem se formando. Imaginei de pronto que dali sairia um gênio. Mas nada. De repente, senti-me mais magro, mais alvo, menor. De repente, senti no rosto o peso dos óculos fundo de garrafa. Procurei um espelho, mas não encontrei nenhum.
Ouvi atrás de mim algumas crianças, cantando. Voltei-me e lá estavam meus irmãos, meus primos e duas ou três vizinhas. Guida estava entre elas. Havia também uma menina alva, de cabelos pretos. Magra, mas não franzina. Trajava um vestido azul marinho, curto. Tinha um sorriso que tornava luzidio qualquer ambiente. Na vitrola, ouvíamos Celly Campello; no salão, ou melhor, na saleta, dançávamos twist.
Era a primeira namorada. Não aquela paixão platônica infantil dos banhos de piscina no clube. Era a primeira paixão realizada. Aquela paixão do para o resto da vida. Aquela paixão do para depois da vida. Aquela paixão do primeiro beijo, de sabor inigualável. Aquela paixão da queda do rendimento escolar. Aquela paixão dos cadernos repletos de corações e flechas e cupidos. De estúpidos cupidos. De inocentes cupidos a amargar a maldade humana. Inveja? Ciúme? Excesso de zelo? Por que motivo alguém poderia ser tão cruel a ponto de destruir uma pueril, mas intensa história de amor?
Pois foi isso, leitor amigo, o que se deu. A minha primeira paixão. Intensa, sensual e proibida foi subitamente dissipada. Não que eu ou ela tenhamos nos apaixonado por outra pessoa. Não que tenhamos sido separados em razão de mudança de bairro ou de cidade por um de nós. Não! Não foi assim! Foi muito mais cruel! A crueldade que acabou o romance, mas não o amor de Romeu e Julieta, de Simão e Teresa: a intervenção familiar.
Naquela tarde de setembro, voltava da escola ansioso por ver Leda, como vinha fazendo desde o retorno às aulas, após as férias de julho. Às seis sempre nos encontrávamos na casa de Guida. Lá sempre os mais chegados da rua se reuniam para ouvir músicas, dançar e brincar de calouros, seguindo os folhetos musicais vendidos nas bancas de revistas com os sucessos do momento.  Só havia rádios AM, mas a seleção musical era bastante eclética, o que nos fazia transitar do rock nacional de Rita Lee e Raul Seixas ao brega de Amado Batista e Lindomar Castilho. Entre uma e outra música uma brincadeira de esconde-esconde e os beijos proibidos com a namorada atrás de armários, guarda-roupas e colunas.
Num desses momentos de entrega mútua, fomos flagrados pela irmã mais velha de Guida. Uma morena bela. Estilo modelo e, assim como Guida, chamava a atenção de todos os homens. Inclusive de nós, projetos de homens, púberes fascinados com a beleza feminina. Como beleza não põe a mesa, Gracinha resolveu fazer uma gracinha na hora errada e, dessa forma, meu pai ficou sabendo o porquê das notas baixas nas avaliações mensais. Eu não estava presente nessa hora e o sumiço de Leda me incomodava. Perguntava-me se tinha feito algo que a tivesse ofendido. Perguntava aos colegas seu paradeiro. Ninguém me dizia nada. Somente Guida teve a coragem de quebrar o silêncio imposto por nossos pais. Disse-me que quando meu pai descobrira, procurou os pais de Leda. Apesar de ser um homem educado, nesse dia perdeu as estribeiras e disse aos pais de Leda que prendesse a cabra deles, porque o bode dele estava solto.
Desse dia em diante, nunca mais brincamos juntos. Leda parecia ter sido desintegrada. Em lugar algum a encontrava. Igreja, praça, sorveteria. Desaparecera como que por encanto, ou melhor, por desencanto. Somente anos mais tarde a revi. Cumprimentávamo-nos à distância. Certa vez tentei em vão reaproximar-me dela e reatar o namoro interrompido à nossa revelia anos antes. Tarde demais! Já estava bastante machucada. Primeiro pela minha covardia; segundo pela morte prematura de seu último namorado, um rapaz de boa índole que ironicamente fora vítima de uma covardia quando tentava apaziguar uma briga.
Hoje, porém, é diferente. Tenho depois de trinta anos a condição de refazer toda essa história. Guida deu-me a oportunidade de procurarmos outro lugar para nos beijar, evitando, assim, o flagrante de Gracinha. Ou ainda a chance de enfrentar com coragem e determinação – ou seria rebeldia? – a intervenção paterna. Quanto sofrimento poderei evitar. Leda não sofrerá uma viuvez ainda solteira. Eu não machucarei as mulheres com quem vivi. Muito menos os filhos que com elas tive. Nunca mais ficarei de boca em boca em busca daquele beijo salgado de Leda. Seremos, enfim, felizes. Teremos Guida como amiga em comum, madrinha de casamento e comadre. Daremos a ela todos os nossos filhos como afilhados. Uma só madrinha de todos os nossos filhos. Uma só comadre. Nada mais perfeito não há. Iniciarei imediatamente a transformação. A mudança definitiva de nosso destino.
Mas esperem um pouco, queridos leitores! Aguardemos só um momento! Olhemos com mais atenção a orientação de Guida. Façamos bom uso deste formidável instrumento! Será que Leda realmente merece esta chance? Quem, de fato, me acompanhou por toda a vida. A quem tenho segredado minhas mais íntimas emoções e experiências? Claro! Guida! Deverei, então, encarar sim nossos pais. Mas, pasme Gracinha! Não será Leda que você irá flagrar me beijando. Será Guida sua irmã caçula. Aquela a quem você vive tirando do sério, somente para provar sua autoridade de irmã mais velha. Sim! Será Guida a paixão da minha vida. Arrancá-la-ei dos braços dos cabeludos. Jogá-los-ei de cima da ponte, quando a maré estiver baixa, para que aprendam a não se meter com mulher  minha. Dar-lhe-ei filhos. Três ou quatro. Não sei ao certo. Mas não será minha comadre. Nem minha eterna amiga. Será minha esposa, minha mulher, minha amante. Foi para isso que entregou a mim esse instrumento. Mas por que não me disse antes que era apaixonada por mim? Por que precisou dessa metáfora para que eu entendesse isso? Por que me iludir com um objeto tão anacrônico? Por que fugira de todos os beijos que furtivamente lhe tentei dar?
Guida bem sabia que, ao me entregar este instrumento, a minha alma se tornaria a mais atormentada e a mais pervertida. Sabia bem ela que, com a amizade que tínhamos, eu, ela e Leda, era bem possível que, com todo este poder, desejasse ficar com as duas. Desejasse formar um explícito triângulo amoroso. Público. Para vingar a hipocrisia e a crueldade de nossas famílias. Bem sabia ela que eu seria capaz de realizar isso. E eu também o sei.
Mas não Guida! Não o farei. Renunciarei a este poder. Richard Collier  e João “Zero” já me provaram que o melhor é deixar as coisas como estão. Quanto ao mimo, guardá-lo-ei com carinho. Somente pessoas com a sensibilidade de Guida são capazes de perceber sua importância. Não se trata de um acelerador de partículas ou de buracos de minhoca. Não. Sua mecânica é mais rústica, mais tradicional. Nem por isso, menos eficaz. Após examiná-lo minuciosamente, percebo que havia um na mesa de meu pai quando eu era criança. Trata-se somente de um tinteiro. Dele podemos ter todo o controle do tempo. Com a sua ajuda muitas transformações foram realizadas. É um instrumento superpoderoso. Uma verdadeira máquina do tempo. Revolucionária? Sim! Pero no mucho!

A Srª. Meursault já dizia que ninguém é infeliz por completo. Analogicamente acredito também que ninguém seja feliz por completo.  Recolho-me a minha humana insignificância. E se Brás Cubas considerou ter lucrado ao não transmitir a ninguém a miséria humana. Eu não posso dizer o mesmo. Atrevo-me, porém, a dizer que consegui zerar a fatura, livrando-me, da parte de Guida, de uma cunhada fofoqueira; e da parte de Leda, de um cunhado pernóstico, um verdadeiro chato de galochas.